Competência legislativa em matéria de licitação

Câmaras de Vereadores e Assembleias Estaduais podem ter leis declaradas inconstitucionais por avançar em matéria privativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

LICITAÇÃO

Rafael Fonseca

9/26/20256 min read

Licitação é o processo justo e isonômico de seleção de fornecedores para a Administração Pública. Sua obrigatoriedade parte do artigo 37, inciso XXI, da Constituição da República Federativa do Brasil. Isto porque os órgão públicos podem ser considerados como o maior comprador brasileiro[1], já que todos os 5.570 municípios acrescidos de 5.570 câmaras de vereadores, 26 estados, 1 distrito federal, órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, além de órgãos da administração indireta, realizam compras de bens e serviços.

Por sua vez, para homogeneizar os procedimentos das licitações nacionais e possibilitar a ampla competitividade entre as empresas no território nacional, a Assembleia Constituinte definiu em seu artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal que compete privativamente legislar sobre normas de caráter geral de licitações e contratações.

Isto permite que licitantes de pequenos município possam participar de processos em outros entes federados, como grandes capitais ou órgãos federais sob as mesmas normas em todo o Brasil. Como será exposto, legislar e disciplinar em território local documentos exigidos na etapa de habilitação, esculpidos no artigo 62 da Lei Federal nº. 14.133/2021, independente da boa-fé e intenção legislativa, fere drasticamente o artigo 22 da CRFB.

NORMAS DE CARÁTER GERAL EM MATÉRIA DE LICITAÇÃO

A preocupação do Texto Maior, em limitar somente para o Congresso Nacional legislar sobre normas específicas de licitações poderia gerar dúvidas, afinal, o que são normas de caráter geral. Para fins didáticos, junte-se a melhor doutrina que trata do tema como o artigo de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[2]:

  • [...] a) estabelecem princípios, linhas mestras e regras jurídicas gerais;

    b) não podem entrar em pormenores ou detalhes nem, muito menos, esgotar o assunto legislado;

    c) devem ser regras nacionais, uniformemente aplicáveis a todos os entes públicos;

    d) devem ser regras uniformes para todas as situações homogêneas;

    e) só cabem quando preencham lacunas constitucionais ou disponham sobre áreas de conflito;

    f) devem referir-se a questões fundamentais;

    g) são limitadas, no sentido de não poderem violar a autonomia dos Estados;

    h) não são normas de aplicação direta. [...]

Dito isso, o professor Dr. Victor Amorim[3], defende que normas que tratam de habilitação são de caráter geral (com destaque próprio em negrito):

  • "O QUE SERIA “NORMA GERAL” NA LEI Nº 14.133/2021? princípios e as diretrizes gerais estabelecidas nos arts. 1º a 5º e 11; definição das modalidades de licitação, tendo em vista expressa previsão no inciso XXVII do art. 22 da CF; estabelecimento dos tipos de licitação (critérios de julgamento) no art. 33; critérios de preferência e de tratamento diferenciado prevista no art. 60[10]; requisitos máximos de habilitação fixadas nos arts. 66 a 69[11]; garantia de qualquer cidadão em impugnar o ato convocatório e solicitar esclarecimentos (art. 164); previsão dos atos decisórios passíveis de interposição de recurso administrativo contida no inciso I do art. 165; prazos mínimos para a interposição dos recursos[12]; taxatividade dos casos de dispensa de licitação (art. 75)."

No mesmo sentido (com negrito próprio) Ronny Charles[4]:

  • "[...] Neste quadrante, por exemplo, podemos defender que a criação de modalidades licitatórias, regras de restrição à participação na licitação, parâmetros gerais de habilitação, critérios de adjudicação, exceções à obrigatoriedade de licitar, criação de sanções administrativas e as prerrogativas extraordinárias características ao contrato administrativo, caracterizam-se claramente como normas materialmente gerais. [...]"

A Doutora em Direito Melissa Guimarães Castello[5] auxilia neste entendimento de que sobra muito pouco para as câmaras de vereadores e assembleias estaduais legislarem, como por exemplo sobre parâmetros internos ao funcionamento da Administração Pública (tais como a forma de seleção do agente de contratação de que trata o art. 8º da nova lei; ou os requisitos das atividades de fiscais de contrato do art. 117), sobre adaptações das normas gerais às especificidades e necessidades locais (como estabelecer a dosimetria das sanções do art. 156), e sobre obrigações contratuais específicas, que atendam às especificidades das políticas públicas dos Entes da Federação (programas de conformidade e metas de performance), por exemplo.

Não por menos, o Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucional lei de ente federativo subnacional (Estado do Mato Grosso do Sul) que exigia, dentre os documentos de habilitação, certidão negativa de violação a direitos do consumidor. Nos termos de decisão de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF) – ADI 3.735/MS, a competência de Estados e Municípios, nesta matéria, estaria restrita a uma classe de objetos a serem contratados ou a peculiares circunstâncias de interesse local. O relator ministro Teori Zavascki (in memorian) relatou que “somente a lei federal poderá, em âmbito geral, estabelecer desequiparações entre os concorrentes e assim restringir o direito de participar de licitações em condições de igualdade”[6]:

  • "Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LEI 3.041/05, DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL. LICITAÇÕES E CONTRATAÇÕES COM O PODER PÚBLICO. DOCUMENTOS EXIGIDOS PARA HABILITAÇÃO. CERTIDÃO NEGATIVA DE VIOLAÇÃO A DIREITOS DO CONSUMIDOR. DISPOSIÇÃO COM SENTIDO AMPLO, NÃO VINCULADA A QUALQUER ESPECIFICIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL, POR INVASÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE A MATÉRIA (ART. 22, INCISO XXVII, DA CF). 1. A igualdade de condições dos concorrentes em licitações, embora seja enaltecida pela Constituição (art. 37, XXI), pode ser relativizada por duas vias: (a) pela lei, mediante o estabelecimento de condições de diferenciação exigíveis em abstrato; e (b) pela autoridade responsável pela condução do processo licitatório, que poderá estabelecer elementos de distinção circunstanciais, de qualificação técnica e econômica, sempre vinculados à garantia de cumprimento de obrigações específicas. 2. Somente a lei federal poderá, em âmbito geral, estabelecer desequiparações entre os concorrentes e assim restringir o direito de participar de licitações em condições de igualdade. Ao direito estadual (ou municipal) somente será legítimo inovar neste particular se tiver como objetivo estabelecer condições específicas, nomeadamente quando relacionadas a uma classe de objetos a serem contratados ou a peculiares circunstâncias de interesse local. 3. Ao inserir a Certidão de Violação aos Direitos do Consumidor no rol de documentos exigidos para a habilitação, o legislador estadual se arvorou na condição de intérprete primeiro do direito constitucional de acesso a licitações e criou uma presunção legal, de sentido e alcance amplíssimos, segundo a qual a existência de registros desabonadores nos cadastros públicos de proteção do consumidor é motivo suficiente para justificar o impedimento de contratar com a Administração local. 4. Ao dispor nesse sentido, a Lei Estadual 3.041/05 se dissociou dos termos gerais do ordenamento nacional de licitações e contratos, e, com isso, usurpou a competência privativa da União de dispor sobre normas gerais na matéria (art. 22, XXVII, da CF). 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.

    (ADI 3735, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 08-09-2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG 31-07-2017 PUBLIC 01-08-2017)"

Pelo exposto, tentativas de legislar critérios de habilitação, pelos entes subnacionais podem e devem ser declaradas como inconstitucionais pelo controle de constitucionalidade dos órgãos do Poder Judiciário.

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[1] O que é licitação. Disponível em: https://rafafonseca.adv.br/o-que-e-licitacao. Acesso em 25/09/2025.

[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, v. 25, n.100, p. 127-162, out./dez. 1988.

[3] Competência normativa sobre contratações públicas: o que é norma geral e norma específica na Lei nº. 14.133. Victor Amorim. Doutor em Constituição, Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB) e Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), professor do Programa de Mestrado e Doutorado Profissional em Administração Pública do IDP Disponível em: https://www.novaleilicitacao.com.br/2021/09/17/competencia-normativa-sobre-contratacoes-publicas-o-que-e-norma-geral-e-norma-especifica-na-lei-no-14-133-2021/#_ftn4

[4] Normas gerais x normas não gerais na nova lei de Licitações. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/normas-gerais-x-normas-nao-gerais-na-nova-lei-de-licitacoes/. Acesso 25/09/2025.

[5] Nova lei de licitações é mesmo toda composta por normas gerais? Disponível em: https://www.jota.info/colunas-acervo/tribuna-da-advocacia-publica/nova-lei-de-licitacoes-e-mesmo-toda-composta-por-normas-gerais. Acesso em 25/09/2025.

[6] STF. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%203735%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true Acesso em 25/09/2025.